quarta-feira, 19 de junho de 2019

Exposição "Tudo é Eco no Universo"


 Texto da Exposição Tudo É Eco no Universo
_ Raphael Fonseca

Há diversas versões para as narrativas que envolvem Eco e Narciso. Possivelmente a mais conhecida, disseminada pelas “Metamorfoses”, de Ovídio, relata Eco, uma ninfa grega que, por ciúmes, fora castigada por Hera, esposa de Zeus: Eco  passara a ser capaz apenas de repetir as últimas palavras ditas por outros. Um dia ela cruza o caminho de Narciso, belo jovem cortejado por todas e todos. Contemplando sua imagem em um lago, ele começa a entoar uma conversa, e apenas as últimas palavras de suas frases são repetidas – era a voz de Eco. Seduzido não apenas por suas próprias palavras, mas por sua imagem refletida no lago, ele definha hipnotizado.

Augusto Fonseca recodifica essa narrativa greco-romana em sua mais recente exposição individual. Seu interesse é indicado não apenas pelo título da exposição, “Tudo é eco no universo”, mas especialmente pela nova série de trabalhos, chamada de “Homo narcissus”. Seu Narciso, porém, foi dissecado por suas mãos e está pronto para os olhos do público; seu nome surge em latim e adota o formato típico da taxonomia científica das espécies. Eis o seu “homem narcísico”.

Circundados pelo branco do papel, tal qual na tradição clássica dos desenhos de anatomia, o artista nos apresenta um conjunto de corpos, todos masculinos – reflexo narcísico do próprio autor? As imagens são tanto de  ossos, músculos e órgãos quanto de pele,  rosto e superfície dessas figuras. Ao topo das folhas de papel, pequenas identificações textuais reforçam o tom de catalogação científica fictícia do conjunto. A riqueza de detalhes das aquarelas é proporcional ao desejo de controle por parte não apenas do artista, mas da humanidade. Aparentemente retiradas de livros históricos de medicina, ao olharmos com atenção, notamos que essas composições reúnem aquilo que os corpos humanos têm de mais admirado e temido.

Porém, há algo nessas anatomias que não se encaixa nas concepções cartesianas de corpo humano. Surgem, como detalhes, representações de diversas partes das flores de Narciso, que nos lembram da impossibilidade de controlar algo em processo de mutação tão contínuo como o corpo humano – há sempre espaço para os corpos estranhos. O olhar do artista se interessa pelos sutis desvios que poderiam configurar que esses corpos estão doentes – mas seriam eles realmente humanos? Quais os limites entre o humano e o vegetal, entre o humano e o animal? Faz sentido diferenciarmos tão racionalmente cada um desses reinos?

Em diálogo com essa série, outro trabalho do artista se relaciona com uma diferente tradição da cultura visual ocidental: as pinturas históricas que representam Narciso. Ao citar a representação dessa narrativa feita por Caravaggio em 1597-99, Augusto resolve excluir o reflexo do personagem e substituí-lo por círculos, pinceladas e formas que conversam com a história da abstração pictórica. Talvez, na verdade, o artista esteja sugerindo que, ao nos apresentar Narciso transformado em pintura, mais do que adaptar um texto, ele esteja sempre a reforçar seu estatuto de pintura. Existiria algo mais narcísico do que continuar pintando? Há pintura que não cite e incite a própria pintura?

Aproveitando-se da arquitetura intimista da Casa Fiat de Cultura, o artista estrutura a exposição com um número bem pensado de obras nas paredes e, ao fundo, a utilização de um espelho. O público, portanto, pode ter a sua própria experiência narcísica no espaço e ver as obras ao seu redor por meio do reflexo. Há algo nessa opção de desenho expográfico – e também nas imagens mostradas – que faz com que a aparência geral da exposição remeta a um pequeno gabinete de curiosidades.

O interesse de Augusto Fonseca pelo corpo humano é visível não apenas aqui, mas em trabalhos anteriores no campo de uma pintura mais pop, como na série “Walk me home” (2015) ou nas fotografias mais recentes e politizadas da série “Capitalismo artista” (2017). Nessa nova exposição, as imagens parecem ter o silêncio e a precisão formal de seus últimos trabalhos, porém envoltos em uma justaposição de elementos dissonantes, vistos no começo de seu percurso.

Entre esses dois campos, sua pesquisa recente parece ecoar uma certa potência de memento mori: ao olhar essas imagens, lembramo-nos da morte. Entretanto, enquanto ela não chega, nos debruçarmos sobre essas obras e nos entregarmos ao ato contemplativo narcísico da pintura não é um pecado. Escutemos o eco dessas imagens.

segunda-feira, 3 de junho de 2019



Consumismo, capitalismo e a ditadura do mercado inspiram a exposição de trabalhos que ficará em cartaz até 10 de março, na galeria do BDMG Cultural

Por Walter Felix

Um carrinho de supermercado é transformado em arapuca pelo artista plástico mineiro Augusto Fonseca. A instalação compõe a mostra Estratégias do Mercado, que denuncia como o sistema capitalista potencializa o consumismo na sociedade contemporânea. Objetos, fotografias, desenhos e aquarelas integram a exposição em cartaz a partir deste sábado (9), em BH.

“Há duplo sentido nesses trabalhos, que também revelam como o mercado nos consome”, comenta Augusto. “As pessoas tentam se vender o tempo todo. O consumidor virou uma espécie de produto. Minha investigação é sobre como o mercado transforma e aliena as pessoas neste mundo em que todos querem ser mercadorias desejáveis, seja no âmbito de trabalho ou pessoal, e acabam adquirindo características de produtos, tornando-se descartáveis, classificáveis e rotuláveis”, observa. 

Ao convidar à reflexão sobre o ciclo de compra e venda, a exposição pode ser interpretada como um contraponto ao caráter imperativo da publicidade. Um desenho apresenta o carimbo “Compre!”. “Os trabalhos são uma espécie de denúncia. Tento explicitar as estratégias de indução que nos forçam ao ato de comprar”, afirma Augusto. 

A crítica a esse comportamento social reverbera no próprio ofício de Augusto. “Este mundo consumista influencia diretamente o mercado da arte, no qual cada artista tem seu lugar, sua prateleira – uns ficam em cima, outros embaixo. Alguns são mais caros, outros mais acessíveis”, aponta.

NARRATIVA 

A exposição aborda as consequências do consumismo, como o lixo e a alienação do indivíduo. Para Augusto, este é o seu trabalho mais político. “Questões sociais me influenciam o tempo todo. Vivemos numa sociedade pautada pelo consumo, o que nos traz inúmeros problemas”, avalia. 

“Todos os meus trabalhos costumam ter estéticas e processos de concepção diferenciados. A narrativa os aproxima. Como vim do cinema, tento sempre passar algo por meio das minhas imagens, independentemente da linguagem”, afirma Augusto, de 40 anos, formado em artes visuais e cinema pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. 

“Cada projeto que crio traz uma pesquisa diferente e poucas relações dentro de minha carreira. Meu processo é fragmentado, não mantenho qualquer linearidade”, explica. Em 2015, a série de pinturas acrílicas Walk me home, exposta no Museu Inimá de Paula, revelou a influência da cultura pop dos anos 1980 na vida dele. Em 2013, Augusto se destacou ao perseguir a racionalidade, conceitual e esteticamente, em Quando penso ter razão, sua primeira individual na Galeria de Arte BDMG Cultural. 

Em 2019, Fonseca levará à Casa Fiat de Cultura a mostra Tudo é eco no universo, ainda sem previsão de abertura. O trabalho dá certa continuidade à exposição Falso espelho (2013), que desconstrói o mito de Narciso. “É a representação de um Narciso doente, que não se reconhece nem se acha bonito – um reflexo do mundo de hoje”, conclui. 

ESTRATÉGIAS DO MERCADO 
Exposição de Augusto Fonseca
Galeria de Arte BDMG Cultural 
Rua da Bahia, 1.600, Lourdes, (31) 3219-8691
Abre diariamente, das 10h às 18h; às quintas-feiras, o horário se estende até as 21h
Em cartaz até 10 de março
Entrada franca

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Exposição "Estratégias do Mercado"

 



CAPITALISMO ARTISTA E O ARTISTA NO CAPITALISMO
 _Cauê Alves

 Capitalismo artista é um termo cunhado por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy*. O termo se relaciona com o que os autores chamam de “era hipermoderna do capitalismo”. Durante as últimas três décadas, momento em que ocorreu uma espécie de inflação estética, o mundo viu um crescimento desenfreado do consumo e a estetização de todos os aspectos da vida social, numa espécie de fetichismo generalizado. O indivíduo contemporâneo tenderia a uma relação instantânea, apressada e puramente imagética com o mundo. Interessado em sensações imediatas, num hedonismo que busca apenas novidades e o divertimento fácil, todos são reféns de um mundo completamente estetizado. A transformação dos modos de vida, a relação com o corpo, o gosto pela moda, pelos espetáculos, shows, cosméticos, design, enfim a indústria criativa e as artes, fazem parte dessa nova era estética. A vanguarda está agora integrada na ordem econômica, o capitalismo artista está marcado por uma lógica de mercantilização e individualização extremas. 

Na contramão da celebração de uma estetização do mundo, e não sem um toque de ironia, a série de fotografias Capitalismo Artista, de Augusto Fonseca, trata das armadilhas sedutoras da vida contemporânea. Ao construir com um carrinho de hipermercado uma arapuca, o artista mostra o quanto o sujeito está aprisionado em seus desejos consumistas. As fotografias possuem uma limpeza formal, feitas em um fundo infinito, próximas de uma estética publicitária tradicional. Mas em vez de produzir imagens para vender produtos, elas são o próprio produto. O corpo nu, despojado de qualquer objeto de consumo, como se estivesse sendo torturado, é o que está sendo consumido. 

Há algo da Pop art e uma íntima relação com a morte nos trabalhos recentes de Augusto Fonseca. Se para Andy Warhol o desaparecimento da mídia que os “15 minutos de fama” pressupõem era uma tragédia anunciada, para Augusto Fonseca trata-se de uma ironia de alguém que não vive no mundo do glamour de Marilyn Monroe ou da Nova York dos anos de 1960- 70. Como o mercado de arte se tornou uma realidade incontornável, que tende a impor seus valores a ponto de tornar a crítica de arte quase irrelevante, caberia ao artista no capitalismo traçar as suas estratégias de mercado. 

Em vez de reproduzir rótulos, Augusto Fonseca faz desenhos de invólucros, como se retirasse a identificação visual imediata dos produtos. Vemos apenas alusões indiretas a marcas de empresas a partir de garrafas e latas, sejam feitas em pontilhados vazados formados pela palavra “compre” carimbada, imperativo que tende a comandar a nossa existência, ou em pinturas mais detalhadas de recipientes. O mero contorno das embalagens, de tanto que elas circulam na mídia, parecem já trazer o nome e a imposição para o consumo arraigados em seu interior. 

O ciclo de consumo e descarte, de tão acelerado e disseminado, está a beira de provocar uma obsolescência programada também na arte, como se o artista precisasse inventar uma nova série inédita para cada uma das feiras de arte. O trabalho de Augusto Fonseca, em vez de buscar uma novidade esvaziada, é uma reflexão sobre o nosso tempo e simultaneamente um diálogo com a história da arte recente. O artista faz uma referência ao trabalho de Waldemar Cordeiro, líder do grupo de arte concreta paulista que na década de 1960 desenvolveu o que chamou de Popcreto, uma transformação estrutural das proposições artísticas com ênfase em seus sentidos e significações. Em vez da objetividade da palavra “canalha”, Augusto Fonseca, usando a mesma tipografia e cor vermelha de Cordeiro, aborda o cinismo atual com a palavra “querido” em uma bandeira, que por si só é um emblema de certo ideário moral de nossa cultura. A mostra de Augusto Fonseca aborda com humor a estetização do mundo e o consumismo contemporâneo, apontando para as contradições entre o capitalismo artista e o artista no capitalismo.

 * Lipovetsky, Gilles. A estetização do mundo: viver na época do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.