terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Exposição "Estratégias do Mercado"

 



CAPITALISMO ARTISTA E O ARTISTA NO CAPITALISMO
 _Cauê Alves

 Capitalismo artista é um termo cunhado por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy*. O termo se relaciona com o que os autores chamam de “era hipermoderna do capitalismo”. Durante as últimas três décadas, momento em que ocorreu uma espécie de inflação estética, o mundo viu um crescimento desenfreado do consumo e a estetização de todos os aspectos da vida social, numa espécie de fetichismo generalizado. O indivíduo contemporâneo tenderia a uma relação instantânea, apressada e puramente imagética com o mundo. Interessado em sensações imediatas, num hedonismo que busca apenas novidades e o divertimento fácil, todos são reféns de um mundo completamente estetizado. A transformação dos modos de vida, a relação com o corpo, o gosto pela moda, pelos espetáculos, shows, cosméticos, design, enfim a indústria criativa e as artes, fazem parte dessa nova era estética. A vanguarda está agora integrada na ordem econômica, o capitalismo artista está marcado por uma lógica de mercantilização e individualização extremas. 

Na contramão da celebração de uma estetização do mundo, e não sem um toque de ironia, a série de fotografias Capitalismo Artista, de Augusto Fonseca, trata das armadilhas sedutoras da vida contemporânea. Ao construir com um carrinho de hipermercado uma arapuca, o artista mostra o quanto o sujeito está aprisionado em seus desejos consumistas. As fotografias possuem uma limpeza formal, feitas em um fundo infinito, próximas de uma estética publicitária tradicional. Mas em vez de produzir imagens para vender produtos, elas são o próprio produto. O corpo nu, despojado de qualquer objeto de consumo, como se estivesse sendo torturado, é o que está sendo consumido. 

Há algo da Pop art e uma íntima relação com a morte nos trabalhos recentes de Augusto Fonseca. Se para Andy Warhol o desaparecimento da mídia que os “15 minutos de fama” pressupõem era uma tragédia anunciada, para Augusto Fonseca trata-se de uma ironia de alguém que não vive no mundo do glamour de Marilyn Monroe ou da Nova York dos anos de 1960- 70. Como o mercado de arte se tornou uma realidade incontornável, que tende a impor seus valores a ponto de tornar a crítica de arte quase irrelevante, caberia ao artista no capitalismo traçar as suas estratégias de mercado. 

Em vez de reproduzir rótulos, Augusto Fonseca faz desenhos de invólucros, como se retirasse a identificação visual imediata dos produtos. Vemos apenas alusões indiretas a marcas de empresas a partir de garrafas e latas, sejam feitas em pontilhados vazados formados pela palavra “compre” carimbada, imperativo que tende a comandar a nossa existência, ou em pinturas mais detalhadas de recipientes. O mero contorno das embalagens, de tanto que elas circulam na mídia, parecem já trazer o nome e a imposição para o consumo arraigados em seu interior. 

O ciclo de consumo e descarte, de tão acelerado e disseminado, está a beira de provocar uma obsolescência programada também na arte, como se o artista precisasse inventar uma nova série inédita para cada uma das feiras de arte. O trabalho de Augusto Fonseca, em vez de buscar uma novidade esvaziada, é uma reflexão sobre o nosso tempo e simultaneamente um diálogo com a história da arte recente. O artista faz uma referência ao trabalho de Waldemar Cordeiro, líder do grupo de arte concreta paulista que na década de 1960 desenvolveu o que chamou de Popcreto, uma transformação estrutural das proposições artísticas com ênfase em seus sentidos e significações. Em vez da objetividade da palavra “canalha”, Augusto Fonseca, usando a mesma tipografia e cor vermelha de Cordeiro, aborda o cinismo atual com a palavra “querido” em uma bandeira, que por si só é um emblema de certo ideário moral de nossa cultura. A mostra de Augusto Fonseca aborda com humor a estetização do mundo e o consumismo contemporâneo, apontando para as contradições entre o capitalismo artista e o artista no capitalismo.

 * Lipovetsky, Gilles. A estetização do mundo: viver na época do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.