terça-feira, 26 de novembro de 2013

O Falso Espelho - Galeria de arte da Copasa 2013



Sobre o “Falso Espelho”
_Fernanda Pitta

Na versão de Ovídio ao mito de Narciso, Tirésias, o adivinho cego, profere no nascimento da famosa personagem o seu conhecido agouro, através da formulação obscura: o menino viveria bastante se não conhecesse a si próprio. Sem revelar propriamente o futuro de Narciso, como um oráculo, Tirésias dá a conhecer o que lhe estaria vetado para sempre, além de profetizar o destino que a ele seria imposto.

Narciso cresce uma bela criatura, um caçador inocente de sua beleza, mas orgulhoso de si. Recusa toda a sorte de amantes, chegando a ser amaldiçoado por um de seus enamorados não correspondidos. A narrativa de Ovídio não permite saber os motivos dessas recusas, mas o desenrolar da história faz-nos perceber que, em sua ignorância, Narciso entretanto perseguia, como bom caçador, aquilo que lhe fora proibido no berço.

A imagem dessa caçada é sintetizada no momento em que Narciso contempla a sua própria imagem na superfície de um rio. O que ele captura é a si próprio, conhecendo o seu reflexo. Nele, o belo jovem acaba por encontrar o amor. O conhecimento proibido de si transforma-se em paixão por si. O amor-próprio, exclusivista, considerado arrogância, selaria sua sina. Ele padece ao largo do espelho d’água, incapaz de abandonar sua imagem refletida, imagem fugidia que ama, mas que, no amor que realiza a maldição, jamais pode possuir. A profecia toma forma no momento em que Narciso dá-se conta de que ama nada mais do que a sua própria reflexão. Impõe-se a ele o dilema insolúvel de reunir-se consigo mesmo. Da impossibilidade de concretizá-lo, e de sua consciência, advém sua metamorfose em flor de narciso.

O mito comporta muitas interpretações. Diferentemente de uma fábula, seu conteúdo moral é aberto. Além de poder indicar que a recusa ao amor do outro é um sinal negativo, excesso de orgulho, o sentido da história pode sugerir que o esforço de conhecer a si próprio é inútil, impossível. Aquilo que o conhecimento de si, simbolizado pelo reflexo, pretende fixar, escapa, não se deixa possuir, transforma-se. Signo da velha desconfiança com relação à imagem, o reflexo é fantasma – quanto mais se olha para ele, quanto menos aquilo que se observa deixa-se capturar.

Augusto Fonseca não pretende apreender uma imagem fixa de si. Seu Narciso é, ao contrário, um ser perplexo, apanhado em processo de transformação. Não é o jovem embevecido consigo mesmo do mito ovidiano, mas um ser que se percebe e se estranha. Nas séries de desenhos, pinturas, fotografias e objetos de Fonseca, vê-se Narciso transmutar-se de humano em natureza, de homem em flor. A metamorfose está em pleno curso.

A princípio, tal situação poderia sugerir sensação prazerosa de reversibilidade, da possibilidade dinâmica e surpreendente de observar uma coisa se tornando outra, guardando algo do que antes era na nova forma, pouco a pouco adquirindo as qualidades daquilo em que se transformará. Momento em que todas as possibilidades parecem possíveis, o instante de esperança e de liberdade do vir a ser prometido pela transformação.

Entretanto, o que se observa é de uma outra ordem. Nos desenhos, principia-se por flagrar a incidência das novas partes e as reações do ser que se transmuta: o pequeno caule abrindo-se em folhas provoca perplexidade e desconfiança. Os estames e pétalas abrem seu espaço pelas narinas, incomodam, sufocam. As palavras agora se emitem em flor, falam aquilo que não mais se controla. Da cabeça surge um impetuoso chapéu, que logo deixa de ser adendo para florescer como cabeleira vistosa. Do traço forte e duro do lápis preto sai a exuberância do vermelho. Da tensão da linha, impõe-se aos poucos a superfície vibrante da cor. Tudo é ímpeto. O ser se prostra, rende-se à mutação brusca e incontrolável.

Nas aquarelas, o meio determina sua fluidez própria. A lógica da técnica encontra a lógica da imagem que se forma diante dos olhos do espectador, impregnando o papel com manchas de cor. Há ainda surpresa e perplexidade, mas as partes que surgem e transformam o corpo exposto de Narciso esparramam-se, contaminam as superfícies dissolvidas das formas. Assiste-se a um Narciso atônito diante de cada novo membro que surge nos braços, nas costas, no torso, à altura das costelas. As novas cores, pertencentes às flores que dele brotam, complementam a superfície originária. Os brancos ressoam nos negros dos cabelos, os verdes incidem-se nos trechos enrubescidos da pele, os amarelos amplificam as sombras de azul arroxeado. O todo se plasma em novas configurações que se expandem em transformação constante, sem parada. Embora o meio da aquarela pareça dócil e maleável, a ideia de metamorfose não sugere reversibilidade. O processo orgânico é implacável e sem volta. É preciso aceitar o devir, cumprir-se o fado de não mais retornar ao ponto de partida. 

Nas fotografias, Narciso mostra-se em seu novo ser, completado o processo de auto-estranhamento e transformação. Ele fita o espectador – a forma antiga completamente emaranhada na nova. Ele já está à vontade, confortável sob a nova pele, o novo corpo. O enquadramento frontal da imagem mostra o novo conjunto reunido, inteiro. Aspira o odor adquirido e deleita-se consigo mesmo. Quase com uma ponta de orgulho do Narciso do mito, deixa-se observar pelo espectador. Agora é este quem, perplexo, o admira.

Que força foi essa que arrastou a forma antiga e transformou na nova? O que se passou com Narciso? O que o fez passar do desconforto, da surpresa, a esse estado de autossatisfação? O processo é cristalino e ainda assim impenetrável. O Narciso de Augusto Fonseca, com paciente ironia, oferece como relicário apenas os pequenos objetos em que se observam, congelados na resina, flor e figura, delicadamente retiradas da ingerência comum. Um microcosmo capturado, visível, translúcido, mas completamente insondável. Alheio ao toque, mas do tamanho de uma mão. Numa operação sutil, Fonseca parece sugerir: quem quiser compreender a metamorfose desse Narciso não tem senão a chance de responder ao seu augúrio e encontrar o seu próprio espelho.